terça-feira, 2 de abril de 2013

Domingo de Páscoa

Stella sentia o sol da tarde entrar pela janela do seu quarto novo. Costumava ler na cama e se deliciar nas tardes solitárias que ainda conseguia ter através de uma boa leitura. Estava lendo Marnie de Winston Graham e surpreendeu-se ao se identificar com a personagem principal, uma ladra. Marnie era uma mulher de 23 anos ou melhor uma mocinha, que mantinha um estilo de vida solitário e planejava seus roubos de maneira muito inteligente, além desse estranho fato tinha horror a sexo e não suportava que homem nenhum lhe tocasse. Com o desenrolar da história coisas bem interessantes vão ocorrendo na vida de Marnie que mantinha uma duplicidade em sua personalidade, alterando seu nome em cada emprego que arranjava. Mas o que realmente chamou a atenção de Stella nessa história era a capacidade de Marnie trocar de nomes e penteados sem nenhuma problema em deixá-los, ela executava seus roubos com uma personalidade falsa e depois fugia para longe sem deixar vestígios. Uma vida bem perigosa pensava Stella, mas no que poderia se identificar? Na solidão de Marnie? Talvez, se tratando de uma ladra, Marnie não poderia se envolver com muitas pessoas. E que tipo de roubo Stella poderia ter cometido, se sentia também uma ladra? Na verdade Stella se sentia parte de uma geração perdida, que não acreditava no mundo e nem nas pessoas. O que tinha para oferecer era amor, mas estava corrompida como ela mesma dizia, ou melhor, enlatava que nem sardinha no seu negativismo.  Mas todo sentimento tem um começo, um ponto de partida, uma lembrança acentuada em algum momento durante toda a vida.
Não se pode dizer que Stella não tinha atributos ou que era uma fracassada, apenas de desligava do mundo e essa  característica era seu escape. Acreditava que estava exatamente da mesma maneira quando era criança só com algumas pequenas alterações de comportamento. Sendo desconectada das coisas matou alguns animais enquanto  brincava com eles, furtou algumas bolinhas de gude na frente da escola e um cartão de visitas em uma loja de chocolates (aí talvez tenha um pouco de Marnie), fugia da casa da sua vó sempre que podia e isso explicava a quantidade de cadeados nos portões, e o que mais se lembrava na infância eram as pequenas esculturas de vidro que tinha sobre a mesinha da sala na casa da sua vizinha, como era delicioso brincar com elas, e isso resumia tudo, pois esse tipo de escultura era só pra enfeite, como poderia uma criança brincar com elas? Seria o mesmo que brincar com fogo ou algo imoral. As consequências a deixaria quebrada.

Havia algo incompreensível em toda essa história, difícil de captar. Todas as meninas, por mais que sejam mulheres guardam coisas sem uma descrição clara, coisas que são traduzidas no modo como se vestem, como amam. As meninas-mulheres se descobrem de dentro para fora em busca de algo mais sedutor em seu caminho. As mulheres-meninas gostam da intensidade e caminham de fora para dentro. Stella ao ler uma descrição dessas iria rir com sarcasmo claro, pois era a forma de não demonstrar a insegurança da sua personalidade. Diria que não se encaixaria em nenhuma das duas definições e que as pessoas não podem ser enquadradas de maneira alguma. Para ela se todo mundo tem algo singular anula todas as outras características que as padronizam e consequentemente ela acreditava que todos eram muito diferentes, e que as formas de socialização serviam só para isso mesmo, socializar, e que no fundo os "eus" verdadeiros deviam ser como pinturas de Pollock.



Definição sobre as pinturas de Jackson Pollock por Stella que não gostava de definir as pessoas, mas as pinturas, Ok: "Uma tranquilidade absolutamente oculta mas intensamente representada. Um luta entre o que é falso e verdadeiro, uma oposição de sentimentos, uma angústia por trás da alegria. Liberdade e muitas possibilidades de se transformar em qualquer coisa, desse mundo ou de qualquer outro. Estreitamente espiritual, anímico, num tom nada encantador, mas em que as palavras se acumulam na língua."

E assim se passava os domingos de páscoa: em devaneios.

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