terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Então eu cresci, cresci como qualquer outra criança que fosse normal. Ao começar a escrever logo noto o  peso de uma frase ou mesmo de uma palavra, ao dizer 'criança normal' eu não estou falando de todas as crianças do mundo, do Brasil ou do bairro em que cresci, estou falando de uma classificação a qual acredito que fiz parte. Na verdade ou melhor sendo sincera, sempre me coloquei no grupo dos estranhos ou desajustados. Só comecei a dar conta do preconceito enraizado na minha educação aos 10 anos, quando fui proibida de brincar com uma garota da minha sala que além de ser negra e pobre, tinha piolhos, e eu branca, com os cabelos cacheados lindos não poderia pegar piolho né? Graças a mamãe! Mas obediência nunca foi meu forte, mas deveria obedecer a mamãe, só que resolvi tomar uma atitude para ajudar a minha amiguinha. Falei no ouvido da professora que ela estava com piolho. Ué, ela tinha que resolver o problema, sempre acreditei que as professoras poderiam nos ajudar em tudo (aí começou meu sofrimento por anos). O problema foi solucionado, a orientadora da escola chamou a minha amiguinha pra conversar fora da sala e eu jamais vou me esquecer das lágrimas dela. Ela tinha perdido a mãe que lhe fazia penteados  e cuidava de seu cabelo despadronizado, e naquele momento sentia toda a rejeição pelas pessoas perfeitas que estavam ao seu redor, que acreditavam nisso, como tentaram me fazer acreditar. Mas eu gostava muito dela e isso não me abalou, apesar de ficar divida entre a opinião da minha mãe e a nossa amizade. Sempre admirei as pessoas que não tinham nada de 'normal' nesse mundo, elas me proporcionavam tudo o que precisava. 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

      "Pode me chamar de gay, não está me ofendendo. 
       Pode me chamar de gay, é um elogio.
       Pode me chamar de gay, apesar de ser heterossexual, não me importo de ser confundido. 
      Ser gay me favorece, me amplia, me liberta dos condicionamentos. Não é um julgamento, é uma referência.
      Pode me chamar de gay, não me sinto desaforado, não me sinto incomodado, não me sinto diminuído, não me sinto constrangido.
      Pode me chamar de gay, está dizendo que sou inteligente. Está dizendo que converso com ênfase. Está dizendo que sou sensível.
      Pode me chamar de gay. Está dizendo que me preocupo com os detalhes. Está dizendo que dou água para as samambaias. Está dizendo que me preocupo com a vaidade. Está dizendo que me preocupo com a verdade.
      Pode me chamar de gay. Está dizendo que guardo segredo. Está dizendo que me importo com as palavras que não foram ditas. Está dizendo que tenho senso de humor. Está dizendo que sou carente pelo futuro. Está dizendo que sei escolher as roupas. 
     Pode me chamar de gay. Está dizendo que cuido do corpo, afino as cordas dos traços. Está dizendo que falo sobre sexo sem vergonha. Está dizendo que danço levantando os braços.
     Pode me chamar de gay. Está dizendo que choro sem o consolo dos lenços. Está dizendo que meus pesadelos passaram na infância. Está dizendo que dobro toalha de mesa como se fosse um pijama de seda. 
     Pode me chamar de gay. Está dizendo que sou aberto e me livrei dos preconceitos. Está dizendo que posso andar de mãos dadas com os anéis. Está dizendo que assisto a um filme para me organizar no escuro. 
     Pode me chamar de gay. Está dizendo que reinventei minha sexualidade, reinventei meus princípios, reinventei meu rosto de noite. 
     Pode me chamar de gay. Está dizendo que não morri no ventre, na cor da íris, no castanho dos cílios. 
     Pode me chamar de gay. Está dizendo que sou o melhor amigo da mulher, que aceno ao máximo no aeroporto, que chamo o táxi com grito.
     Pode me chamar de gay. Está dizendo que me importo com o sofrimento do outro, com a rejeição, com o medo do isolamento. Está dizendo que não tolero a omissão, a inveja, o rancor. 
    Pode me chamar de gay. Está dizendo que vou esperar sua primeira garfada antes de comer. Está dizendo que não palito os dentes. Está dizendo que desabafo os sentimentos diante de um copo de vinho. 
    Pode me chamar de gay gay. Está dizendo que sou generoso com as perdas, que não economizo elogios, que coleciono sapatos. 
    Pode me chamar de gay. Está dizendo que sou educado, que sou espontâneo, que estou vivo para não me reprimir na hora de escrever.
  Pode me chamar de gay. Que seja bem alto. A fragilidade do vidro nasce da força e do ímpeto do fogo."

(Carpinejar in: Canalha!, 5ª ed., Ed. Bertrand, Rio de Janeiro, p. 48)

domingo, 20 de janeiro de 2013

O que sentiu ao pegar aquele livro nas mãos ultrapassava qualquer explicação lógica. Era como estar em outra década, a mesma da publicação talvez, se sentiu inspirada, como quando ouvia uma música ou admirava uma imagem e aquilo lhe perturbaria a alma até descobrir o que havia ocorrido naquele segundo em que tudo existia ao mesmo tempo que nada. Poderia viver qualquer coisa, mas isso era inexplicável, era divino, ou melhor, profano e perigoso para a sanidade. Como amava a escrita, a transposição das idéias em um livro. E lá estava ele eterno, quem dirá que no momento que abri a página não era ele que estava do meu lado? Talvez sentado, fumando um cigarro e sorrindo ou mesmo irritado: Júlio Cortázar!

sábado, 5 de janeiro de 2013

A foda sem zíper



"... Para a verdadeira e definitiva foda sem zíper de primeira classe, era necessário que você não viesse a conhecer o homem muito bem. Eu havia notado, por exemplo, que todas as minhas paixonites se dissolviam tão logo eu me tornava realmente amiga de um homem, começava a compreender seus problemas, ouvia suas queixas com relação à esposa, ou às ex-esposas, à mãe, aos filhos. Depois disso, passava a gostar dele, talvez até amá-lo - porém sem paixão. E o que eu queria era paixão... - ... Depois disso, ele se transformava num inseto preso por um alfinete, num recorte de jornal plastificado. Eu poderia apreciar sua companhia, até admirá-lo em algumas ocasiões, mas ele já não tinha o poder de fazer-me acordar trêmula no meio da noite...

Desse modo, outra condição para a foda sem zíper era a brevidade. E o anonimato a tornava ainda melhor.

... Sem zíper, vejam bem, não porque os europeus usem braguilhas com botões e não com zíper, nem porque os participantes sejam tão arrasadoramente atraentes, mas porque o incidente possui toda a rápida compreensão de um sonho e aparentemente está livre de qualquer remorso e culpa; porque não fala do falecido marido ou da noiva do soldado; porque não existe racionalização, porque não há fala nenhuma. A foda sem zíper é absolutamente pura. Livre de motivos ulteriores. Não existe jogo de poder. O homem não "toma" e a mulher não "dá". Ninguém tenta cornear um marido ou humilhar uma esposa. Ninguém procura provar nada ou arrancar algo de alguém. A foda sem zíper é a coisa mais pura que existe. E é mais rara do que o unicórnio." 



(Capítulo: A Caminho do congresso dos sonhos ou a foda sem zíper extraído do livro  "Medo de Voar", Erica Jong)